África, berço da civilização

A África tem sido palco de alguns dos maiores avanços tecnológicos da história, entre eles a prática agrícola, criação de gado, mineração e metalurgia (do cobre, do bronze, do ferro, do aço), o comércio, a escrita, a arquitetura e engenharia na construção de grandes centros urbanos, a sofisticação da organização política, a prática da medicina e o avanço do conhecimento e da reflexão intelectual. Foi também centro do desenvolvimento de civilizações, uma das mais avançadas da experiência humana. Entretanto, a imagem de seus povos como não construtores do conhecimento ou da tecnologia, complementada pela idéia de suas civilizações como “importadas” ou erigidas por povos estrangeiros, ainda molda o conceito comum da África como um continente sem história. Apenas muito recentemente, há o reconhecimento de uma África histórica repleta de grandes realizações.
Ao abordar a história africana, é preciso ampliar a perspectiva para muito além dos últimos quinhentos anos, que constituem apenas uma minúscula parte dessa história. Aliás, o ufanismo em torno da expansão européia quinhentista tende a distorcer nossa visão histórica em geral, reduzindo o mundo antigo a um imobilismo primitivo que não o caracterizava. Os povos antigos, até mesmo africanos, navegavam os mares à procura da rota para as Índias, milênios antes das caravelas portuguesas e espanholas. Os egípcios construíam navios de grande porte desde o terceiro milênio a.C., e há indícios de que enviavam frotas até à Irlanda à procura de estanho para fazer o bronze. O mundo antigo caracterizava-se por ativo comércio e intercâmbio cultural entre a África, a Europa, Sumer e Elam, a Índia, a China e Ásia oriental, e provavelmente as Américas.
Os mouros, basicamente povos africanos islamizados, dominaram a península ibérica durante séculos, ocasionando um verdadeiro iluminismo na Idade Média européia ao protagonizar o avanço dinâmico do conhecimento humano. Na Europa, naquela época, não havia dúvida quanto à identidade africana dos mouros, como testemunham o personagem Otelo, de Shakespeare, bem como retratos pintados e bustos esculpidos à época.
A circunscrição do olhar histórico aos últimos quinhentos anos reforça a imagem construída, muito recentemente, dos povos africanos como primitivos ou eternos escravos. Ao deixar de lado 5.500 anos de desenvolvimento africano que antecedem o período da escravidão mercantil, essa perspectiva encoberta um fato incontestável: os africanos viveram apenas uma ínfima parte de seu tempo histórico amarrados aos grilhões da escravidão mercantil. Durante milênios, foram agentes ativos do desenvolvimento da civilização humana em todo o mundo. Você já havia pensado nisso? O período da escravidão mercantil e da colonização e descolonização da África correspondem a menos de 8% dos seis mil anos da história africana! Ou seja, os africanos viveram 92% de sua história exercendo sua soberania e contribuindo para a construção da civilização e do desenvolvimento em todo o mundo. Observe a linha do tempo da história africana apresentada a seguir:

1.1 Escravo = negro?
No Brasil, é tão forte a identificação da origem africana com a condição escrava que a palavra “negro” é usada como sinônimo de escravo. Entretanto, a escravidão atingiu vários povos do mundo, até os brancos europeus, e não apenas os africanos. Aliás, o vocábulo “escravo” deriva de eslavo, em decorrência da escravização de europeus de língua eslava, muito comum durante o Império Romano e a Idade Média.
Em termos qualitativos e quantitativos, os sistemas de escravidão no mundo antigo variavam, porém todos diferiam da escravidão praticada pelos europeus na África nos últimos séculos. Em Atenas, a escravidão por dívida foi substituída pela captura e venda de prisioneiros de guerra oriundos das sociedades ao redor do mar Egeu. Ao apogeu dessa prática, os escravos formavam um terço da população. O Império Romano praticava o escravismo em escala maior. Entre os séculos II a.C. e IV d.C., a captura de escravos passou a ser uma das principais razões para o expansionismo militar romano. Obtinha-se escravos principalmente em guerras contra os povos “bárbaros” da Europa ocidental e oriental: germanos, eslavos, bretões, gregos, celtas e outros. Calcula-se que um terço da população era constituída por escravos.

1.2 A natureza inédita da escravidão mercantil européia na África
É comum a alegação de que a escravização de africanos no contexto da expansão européia e da colonização das Américas nada tinha de especial, pois os africanos já escravizavam seus próprios irmãos e os europeus apenas se engajavam em um comércio legítimo já estabelecido. Tal visão omite o aspecto inédito e fundamental do escravismo mercantil europeu: com base nas teorias racistas, que destituíam os africanos de sua condição humana, tornava-os animais de carga ou ferramentas para geração de lucro, estampando-os com a marca de uma inferioridade inata em que o cativeiro seria sua “salvação”.
As formas de servidão praticadas na África baseavam-se na captura de prisioneiros de guerra. A condição servil era reversível e não reduzia o indivíduo à condição de simples mercadoria. Além de manter intacta a sua humanidade, o cativo gozava de certos direitos e ao sair da servidão podia elevar seu nível social. Havia reinados em que era rigorosamente proibido mencionar a origem servil de uma pessoa; assim, um antigo cativo podia tornar-se chefe de aldeia. Quando, em algumas partes da África nos séculos XVIII e XIX, o tráfico tornouse prática maciça, tratava-se não de um fenômeno africano, mas da integração das sociedades locais ao sistema econômico capitalista mundialmente dominante.
Ademais, a enorme escala em que a escravidão mercantil operava na África levou a um significativo processo de despovoamento do continente e contribuiu para a desestruturação do seu processo de desenvolvimento. Nem de longe essas conseqüências se comparam àquelas provocadas por formas anteriores de servidão.


1.3 Unidade e desenvolvimento na história africana
Há uma unidade subjacente à continuidade de desenvolvimento em todas as regiões africanas. Esse fato reflete um processo que remonta aos tempos em que surgiam a prática da agricultura e da criação de gado, bem como a tecnologia do ferro. O povoamento do continente envolvia deslocamentos de populações com origens comuns que se estabeleciam em terras novas como grupos distintos, consolidando novas identidades ao mesmo tempo em que conservavam semelhanças derivadas das tradições originais.
As fases férteis do Saara e sua lenta transformação em deserto provocaram migrações e intercâmbios entre seus habitantes e vizinhos. Seguiam populações em direção ao leste, nordeste, norte e sul, onde se misturavam a povos locais. Assim, o Saara-Sudão seria um ponto de difusão de elementos culturais e simbólicos, bem como de instituições e atitudes sociais, comuns a povos africanos geograficamente muito distantes entre si. O domínio da tecnologia do ferro se integra a esses fluxos, formando um fator de desenvolvimento comum entre os povos do continente.
A civilização clássica do Egito pode ser identificada como outra fonte comum, refletida em vários aspectos de fluxo cultural. Mais de mil línguas distintas derivam de alguns poucos grupos lingüísticos, e há indícios de que a língua egípcia antiga tenha sido uma espécie de língua-mãe do continente.

1.4 Temas gerais da história africana
Aqui você vai estudar considerações breves, e portanto superficiais, sobre temas que perpassam a experiência africana de modo geral, no intuito de esboçar um quadro em que os Estados e Impérios listados na cronologia possam ser contextualizados. Qualquer generalização, evidentemente, contempla as exceções.

1.4.1 O saber e o progresso tecnológico
Em todo o continente e em diversas épocas, os povos africanos desenvolveram sistemas de escrita e de altos conhecimentos na astronomia, na matemática, na agricultura, na navegação, na metalurgia, na arquitetura e na engenharia. Na medicina, praticavam desde a cesariana até a autopsia, passando por vários outros tipos de cirurgia, para não mencionar a vacina contra a varíola e outras doenças. Construíram cidades belíssimas e centros urbanos de conhecimento internacional que abrigavam bibliotecas enormes em Timbuktu e os maiores lucros eram obtidos com o comércio de livros. Criaram filosofias religiosas, sistemas políticos complexos e duráveis, obras de arte de alta sensibilidade e sofisticação. A riqueza do ouro e do marfim africanos não apenas compunha as moedas como decorava os lares e as beldades da Índia, da China e da Europa. O melhor ferro no mercado internacional do século XII, de acordo com al-Idrisi (apud. Davidson, 1974), era o da África central e meridional. Assim, não apenas o acúmulo de riqueza e a centralização do poder, como também o desenvolvimento tecnológico, cultural e humano caracterizaram a experiência africana, que se integrava ao mundo antigo em um intercâmbio dinâmico.

1.4.2 Natureza do Estado político e da propriedade
O hábito de identificar a constituição de grandes Estados e Impérios como indicador do progresso político reflete um critério um tanto arbitrário, pois as sociedades pequenas se demonstraram capazes de criar formas de governo democráticas, igualitárias e duradouras. Contudo, a existência de grandes Estados e Impérios no contexto africano – o de Mali abrangia um território maior que o Império Romano – nos leva a registrar algumas reflexões sobre características do Estado na África.
Prevalecia na maioria dos casos a monarquia espiritualmente fundada, ou seja, os poderes políticos procediam da sanção espiritual coletivamente reconhecida, e a pessoa do monarca (que não era considerado divino) incorporava o consentimento de Deus ao bem-estar de seu povo. Ao mesmo tempo, os sistemas políticos eram marcados pela descentralização do poder, em grande parte proveniente de um fato básico que os marca como africanos: a propriedade coletiva da terra – ou talvez melhor dito, a ausência do princípio de propriedade da terra. A terra, como o ar, era um bem comunitário indivisível e inalienável. As questões e os conflitos em relação à terra, a administração de seu uso, eram atributos de chefes autóctones, enquanto os impostos e outras exigências do Estado incidiam sobre os homens e os bens móveis.
Aqui reside o perigo da aplicação aos Estados africanos de conceitos formulados a partir da história européia, como o do feudalismo. Se não existia nos Estados africanos a propriedade privada da terra, não havia feudo, e portanto não lhes cabe a noção de feudalismo. Da mesma forma que constitui um equívoco a aplicação do rótulo “escravismo” aos sistemas de servidão praticados na África, na medida em que os iguala ao escravismo mercantil europeu, o conceito de feudalismo também se revela equívoco.
Outra característica do Estado africano é o papel do rei como regulador da distribuição de riqueza implícito no próprio monopólio real. Além de acumular riqueza, o soberano o distribuia, e sem esse poder não lhe seria possível exercer a autoridade investida na função real. Baseando-se em extensas pesquisas, Basil Davidson (1974, p.91-92) assim conclui:
Essas sociedades africanas nunca desenvolveram a autocracia do governo feudal que repousava sobre a alienação da terra daqueles que a cultivavam. Não ocorreu no seu caso tamanha e tão crucial estratificação da sociedade. Construídos sobre a propriedade coletiva da terra ..., esses reinados permaneciam muito mais amplamente democráticos, mesmo considerando o constante do poder real após a metade do século XV, do que seus contemporâneos na Europa.

1.4.3 O ethos da sociedade matrilinear
O sistema matrilinear caracteriza as sociedades africanas desde tempos imemoriais. Trata-se de um sistema de partilha de direitos e responsabilidades em que a mulher desempenha importantes funções e goza de direitos sociais, econômicos, políticos e espirituais. Seu papel era marcante na sucessão real, na herança de bens materiais, e no exercício do poder político. Ki-Zerbo observa (1980, p. 755) que o parentesco uterino parece ter saído das profundezas da pré-história africana, do momento em que a sedentarização do neolítico tinha exaltado as funções domésticas da mulher, a ponto de torná-la o elemento central do corpo social. O profundo impacto dos sistemas patriarcais do islamismo e do colonialismo europeu que introduziram novos esquemas de organização social e de exercício do poder não conseguiu eliminar do ethos social africano o legado dessa milenar proeminência da tradição matrilinear.
São vários os exemplos de mulheres soberanas no Egito. Em Núbia, a linhagem das rainhas Kentakes reinou durante seiscentos anos por direito próprio e não na qualidade de esposas, à frente da adminstração civil e militar.
Angola nos dá o exemplo da Rainha N’Zinga, Gana o de Asantewaa, e assim por diante: a história da África é repleta de rainhas estadistas e guerreiras. Cumpre observar que o sistema matrilinear foi associado ao suposto atraso africano por antropólogos convencidos da superioridade da cultura ocidental. O patriarcalismo seria, para tais cientistas, um dos fatores que fez da civilização européia o estágio mais avançado de um suposto progresso universal dos povos – modelo a ser almejado pelos primitivos.
Cheikh Anta Diop, autor de estudos aprofundados sobre o tema, indaga qual a civilização mais avançada: a que nega à metade da população sua plena condição humana, ou aquela que reconhece e estimula nos cidadãos de ambos os sexos a capacidade de realização pessoal e participação na vida coletiva? Que o digam as sociedades ocidentais modernas ao sofrer profundas pressões e modificações sociais, políticas e econômicas oriundas da falência do patriarcalismo. O “último estágio” do desenvolvimento humano vai cedendo, e o modelo das sociedades africanas matrilineares oferece exemplos para orientar esse movimento.


1.5 Algumas matrizes culturais africanas
 A seguir você vai estudar algumas das matrizes principais a partir das quais se desenvolveriam os Estados e as sociedades africanas que os europeus encontrariam mais tarde. Entre seis mil e quatro mil anos antes da era cristã, já existiam concentrações de populações de prática agrícola incipiente ao lado dos rios Nilo, Niger e Congo que protagonizaram avanços no conhecimento e na tecnologia. Os Isonghee de Zaïre utilizavam uma espécie de ábaco, e povos da África central construíram os túmulos ciclopeanos, entre as primeiras obras monumentais da humanidade.


1.5.1 Civilizações clássicas: Egito, Núbia, Axum
É no vale do rio Nilo que se desenvolveu a maior civilização clássica africana, a egípcia, cujas origens estão na migração de africanos vindos do oeste, sul e sudoeste, provocada em parte pela desertificação do Saara. A tradicional localização do Egito no “Oriente próximo” assim constitui um equívoco geográfico, histórico e etnológico que ainda predomina no imaginário social e em muitas obras sobre a África, as quais deixam de incluir o Egito como parte de sua história. A civilização egípcia foi autora de avanços tecnológicos revolucionários, talvez a mais importante da história humana - a invenção da escrita. Conheça outros avanços:
A civilização egípcia, mais de quatro mil anos antes da era cristã, desenvolveu um calendário mais exato que o ocidental moderno. As pirâmides demonstram uma engenharia extremamente precisa há quase cinco mil anos.
Os papiros de Ahmes e de Moscou mostram uma matemática avançada e abstrata desenvolvida desde treze séculos antes de Euclides. A medicina era praticada e pesquisada desde 3.200 a.C. por Atótis, e a partir de 2.980 a.C. sofreu avanços consideráveis com Imhotep. Os papiros descobertos por Smith (1.650 a.C.) e Ebers (2.600 a.C.) revelam conhecimentos médicos avançados, incluindo “as primeiras suturas e fitas; os começos da antissepsia com sais de cobre” e “a existência de uma medicina objetiva e científica..., fundamentada na atenta e repetida observação do doente, na experiência clínica e num conhecimento da anatomia que até o momento ninguém suspeitava”. (Comentários de J.H. Breasted, tradutor do papiro Smith e de P. Ghalioungui, apud. Newsome, in: Van Sertima, 1983).
Estes são apenas alguns exemplos do avançado conhecimento do Egito, onde estudaram sábios gregos como Sócrates, Platão, Tales, Anaxágoras e Aristóteles.
O chamado pai da história, Heródoto, também observou a intimidade entre a África e as origens do Egito quando afirmou que entre os egípcios e os etíopes, não gostaria de dizer quem aprendeu com quem (Apud. Davidson, 1974, p. 12-13). O testemunho de Heródoto não foi levado muito a sério por cientistas europeus comprometidos com a tese de uma origem estrangeira da civilização egípcia. A partir da década de 1950, entretanto, o químico, arqueólogo e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop realizou obra extensa de pesquisa científica que derruba as teses erigidas para “provar” tal origem externa.
Outros autores como Théophile Obenga, Martin Bernal, Basil Davidson, Ivan Van Sertima, Runoko Rashidi levantam dados que reforçam o registro feito desde os séculos XVIII e XIX por pesquisadores europeus (Gerald Massey, Godfrey Higgins, George Rawlinson, John Baldwin, Albert Churchward e outros) sobre as persistentes evidências de que a civilização africana expandiu-se por meio do mundo antigo, estabelecendo-se como um dos principais esteios do desenvolvimento humano.
A origem da civilização da antiga Grécia constitui tema central nesse contexto. Ainda prevalece o chamado modelo ariano, que postula uma origem européia. Contrapõe-se a esse modelo o depoimento dos próprios gregos antigos, o qual reconhecia grande influência do conhecimento anteriormente desenvolvido no Egito sobre sua herança intelectual e cultural. As investigações científicas fundamentam um modelo afroasiático que confirma a tese de Diop: o Egito africano destaca-se entre as raízes da civilização ocidental. O Egito manteve intercâmbio com o restante da África desde a época da quarta dinastia (c. 2620-2480 a.C.), quando grandes expedições marítimas eram enviadas ao sul pelo Mar Vermelho. Comerciantes egípcios seguiam ao sul e ao ocidente do continente, chegando talvez até à beira das florestas do Congo.
Também ao leste e ao norte, havia intercâmbios com os povos e civilizações arábicas, sumerianas e elamitas (persas). A tradição egípcia e as ruínas de grandes complexos arqueológicos atestam contatos importantes com a Índia por meio de Harappa/Mohenjo-Daro, uma rica civilização urbana do terceiro milênio a.C.m criada por gente negra que exibe semelhanças com o contemporâneo Egito dinástico. Quanto à Europa, as Nossas Senhoras negras, resquícios do culto a Ísis na Europa oriental e ocidental, configuram apenas um entre muitos registros do seu íntimo e prolongado contato cultural com o Egito.

Núbia
Ao sul do Egito, Núbia – rica em ouro, ébano e cultura humana – acompanhou as mais longínquas origens da cultura egípcia. Lá floresceu o império de Cush, com capital em Napata, cujos dirigentes lideraram o próprio Egito durante o período da 25ª dinastia (c. 750 a 660 a.C.). Mais tarde, o centro cushita deslocase para Méroe, de onde supõe-se que a tecnologia do ferro se espalha para o sul e o ocidente da África. De aproximadamente 200 a.C. até o quarto século da era cristã – em um período em que o Egito já se encontrava sob o domínio macedônio e romano – o Império Meroítico de Cush tinha sua própria escrita, construía grandes centros urbanos com templos e pirâmides, manufaturava metais e engajava-se em um ativo comércio internacional com países remotos como a Índia e a China.
A expressão “etíope” referia-se a antes a todos os africanos, termo “negro”.

Axum
No norte da Etiópia, tem início no quinto século a.C. o Estado de Axum, fruto de intensa interação africana com o sul da Arábia. Assim, a lenda da aliança da rainha de Sabá com Salomão, sendo seu filho Menelik o mítico fundador da Etiópia, não carece de fundamento histórico. A partir de aproximadamente 50 d.C., o porto de Adulis se tornaria um centro mundial de ativo comércio com a Ásia através do oceano Índico. Adulis fazia parte de uma cadeia de portos que subiam o litoral desde a região centro-africana. O rei Ezana de Axum, primeiro monarca convertido ao cristianismo, derrotou Méroe no quarto século d.C. e inaugurou a era do cristianismo etíope, fenômeno que recorda os três papas africanos da igreja católica: Vítor I, que assumiu a cadeira papal em 189, Miltíades (311), e Gelásio I (492). A cultura urbana de Axum daria origem a um dos mais duradouros impérios da história. A Etiópia das dinastias zagüe e salomônicas sucumbiria apenas à invasão da Itália fascista em 1935, reinstalando o imperado Haile Selassie em 1941.

1.5.2 Os bérberes
Os descendentes dos migrantes do Saara-Sudão rumo ao norte, na época da seca, são os bérberes, donos de uma língua e escrita próprias e de um denso complexo de tradições culturais. Sem unificar-se em uma entidade política, os reinados bérberes desenvolveram uma intensa atividade comercial responsável pelo estabelecimento de intercâmbios pelo Saara com povos africanos ao sul. A base desse comércio era a troca do sal e o cobre pelo ouro e o marfim.
Seu comércio mediterrâneo, em relação estreita com os fenícios, integrava o interior da África aos circuitos do mundo antigo. Nem os fenícios e nem Roma, ao conquistar a região, conseguiu domar o espírito de independência e a especificidade cultural dos bérberes.

1.5.3 África ocidental
Os descendentes daqueles que migraram do Saara-Sudão em direção ao sul se misturaram a populações locais, praticando a agricultura e a mineração. O fator mais importante no seu desenvolvimento seria a tecnologia do ferro, de modo geral a partir de 500 d.C., que também propiciou o sucesso de Méroe e Axum. No comércio de ouro e marfim, intermediado pelos berberes, fundou-se em parte a base econômica de grandes Estados africanos ao sul do Saara, entre os primeiros do Império de Gana.
Quase um milênio antes da era cristã, surge na confluência dos rios Niger e Benue a civilização nok, conhecida pelas suas sofisticadas obras de arte. Com o uso do ferro, sua rica cultura duraria até o início do terceiro século da era cristã.

1.5.4 África central e meridional
O grande fenômeno das migrações de povos do grupo lingüístico banto, a partir de 2.500 anos, estava consubstanciado pelos estudos que apontam a sua origem na região da atual Nigéria e Camarões. Lá teria surgido há milênios o “banto original” – do qual derivariam centenas de línguas africanas modernas. A múltipla trajetória dos que falavam essa língua, os levaria em grupos pequenos (Bérbere - O termo designa um grupo lingüístico e não étnico) rumo ao sul, para o Congo, ou em direção ao leste e depois ao sul. O domínio da tecnologia do ferro confunde-se com essas migrações, embora não se saiba exatamente quando e de que forma. A diáspora banta prolongou-se da bacia do Congo ao sul, sudoeste, e sudeste, lentamente deslocando ou absorvendo populações locais.
Entre os povos originais que resistiram a essa “invasão” banta e continuaram vivendo da caça e coleta, estão os san e os khoi-khoi. Cabe lembrar a seu respeito o alerta de Davidson (1974, p. 56) quando assinala que de forma o chamado primitivismo desses povos implicaria em inferior talento ou inteligência. O modo de vida social deles, individual e coletivo, com sua força e sua flexibilidade, suas minúcias de limites e equilíbrio, sua nua simplicidade de forma combinada com tolerância para tensões e erros, não dá lugar para tal idéia

1.5.5 O Islão
Embora externo ao continente africano, o Islão constitui uma matriz civilizatória na medida em que sua expansão tem impacto importante sobre a formação e/ou a sustentação de vários estados políticos. Cabe lembrar alguns fatos básicos em relação a esse fenômeno, ressalvados os perigos de qualquer generalização.
De forma geral, não se trata de uma superposição de elites ou classes dirigentes “árabes” sobre sociedades e populações originais, muito embora a expansão islâmica implicou em violentos conflitos, obrigando à supressão de intensa resistência. Entretanto, as estruturas dos Estados islamizados costumavam manter a forma descentralizada característica dos africanos. A expressão “sociedades africanas islamizadas” reflete o fato de que os povos, as sociedades e as estruturas de Estado preservavam a essência de sua identidade africana.
Na maioria dos casos, a imposição da religião islâmica era relativa, sobretudo fora dos grandes centros urbanos. As religiões e os costumes nativos continuavam vigentes, mesmo que as lideranças locais ou as elites assumissem, por vezes de forma bastante simbólica, a religião do prestígio e do poder. A extensão e intensidade da influência cultural do Islão variam de acordo com o lugar. De grosso modo, na África oriental dos grandes centros urbanos medievais as populações absorveram de forma mais atenuada a prática e os preceitos islâmicos, enquanto que em algumas áreas da África ocidental, o Islão implantou-se de uma forma ortodoxa “mais realista que o rei”.

2. Os africanos nas Américas antes de Colombo
Os primeiros espanhóis que visitaram o istmo de Panamá e o México no início do século XVI, entre eles o historiador Pedro, o Mártir, registraram a existência de povos negros que viviam nas florestas e se engajavam em um comércio e em uma relação, às vezes, conturbada com os índios, que viviam ali, ao redor. O fato não lhes causava a estranheza que hoje produz em função da construção da imagem da caravela como a primeira embarcação oceânica e do africano atrasado incapaz de navegar os mares. Os europeus quinhentistas conheciam bem o africano navegador. O próprio Colombo havia viajado na África, e seu irmão, um comerciante de jóias, lhe trazia notícias de clientes (O termo banto refere-se ao grupo lingüístico e não tem conotação etnológico). africanos acostumados a viagens marítimas. Tudo indica que fontes africanas tenham fornecido as informações em que Colombo e o rei de Portugal se basearam para propor à Espanha a Linha de Tordesillas, como divisória de um continente de cuja existência ninguém tinha certeza ao assinar aquele tratado.
Colombo foi detido por uma tempestade no porto de Lisboa, após sua segunda viagem às Américas e quando ainda estava a serviço da Espanha. O rei de Portugal o convocou à corte, e Colombo apresentou-lhe os índios que trazia, bem como vários gua-nin, nome indígena das pontas de lança que os nativos diziam ter comprado dos “homens altos e escuros que chegam de onde nasce o sol”. Essas pontas de lança eram feitas de uma liga metálica muito específica, fundida e utilizada na África oriental. O nome da liga, em mandinga, era guanin.
São vastas e variadas as evidências e os indícios da presença africana nas Américas, sobretudo no México, antes de Colombo. Pesquisas realizadas em campos científicos tão diversos quanto a arqueologia, a lingüística, a serologia (estudo das propriedades do sangue), a botânica, a antropologia, a história da arte, e outros, convergem para essa conclusão. Restos humanos encontrados a partir da década de 1970 a confirmam. Ivan Van Sertima reúne dados levantados nessas pesquisas no livro Eles vieram antes de Colombo. Diante do peso de tanta evidência concreta e amplamente sustentada na investigação científica, fica nitidamente demonstrado que a única razão da ainda persistente relutância em aceitar essa tese é o preconceito. Aliás, um preconceito duplo: o que identifica o africano como incapaz de realizar tal feito, e o que se recusa a admitir a possibilidade de não terem sido os europeus quinhentistas quem primeiro “descobriu” as Américas.
Van Sertima identifica dois possíveis períodos de contato entre a África antiga e as Américas. O primeiro teria lugar na época em que Núbia reinava como principal poder marítimo mundial, quando aparecem em território olmeca as gigantescas cabeças esculpidas em pedra que retratam, com impressionante competência e fidelidade a detalhes, rostos de marinheiros núbios com suas indumentárias típicas. Nessa época aparecem, sem vestígio de evolução anterior no México, pirâmides no estilo núbio e conjuntos de elementos culturais cuja identidade com os africanos está longe dos limites da coincidência. Ademais, a cerâmica pré-colombiana retrata rostos africanos em abundância, com a mesma minuciosa perfeição realizada nos monumentos de basalto dos olmecas.
O segundo contato seria na época do príncipe Abu-Bakari, imperador de Mali cuja história é contada por historiadores muçulmanos, seus contemporâneos. Soberano confinado a um império sem litoral, fascinou-se pelo mar, mandou construir frotas e lançou expedições ao Atlântico. Em uma delas, o próprio Abu- Bakari embarcou pelos “rios dentro do mar” – correntezas que levam diretamente ao continente americano – e nunca mais foi visto. Nos registros do Popul-Vuh, livro de tradição dos maias, foi exatamente nesse tempo (1311 d.C.) que lhes apareceu um “príncipe trajando branco vindo de onde nasce o sol”. O mito maia de Quetzalcoatl, a serpente emplumada, e os costumes, ritos, símbolos, e vocábulos a ele associados, constituem outro conjunto cultural de coincidência demasiadamente ampla e perfeita com a africana para ser atribuída à sorte. Esses exemplos são apenas a ponta de um iceberg cujo enorme peso como evidência da presença africana nas Américas pré-colombianas ainda não abalou a convicção eurocentrista, puramente ideológica, de sua impossibilidade. No Brasil, por exemplo, ainda não foi publicado o livro de Ivan Van Sertima.